domingo, 4 de março de 2012

A Fatia



As páginas do diário estão cansadas, e eu cansado delas. É que seria tão vago preenchê-las friamente... Vale mais um coração, uma fatia da vida num prato, uma fatia inteira em uma só dose. O grito é necessário, melhor que o silêncio do sono que, assim como você, não vêm, ao menos não agora. “Mas o que foi que deu nesse garoto? Que face é essa, jovem e resignada?” Sou só um ator sem palco, de pau duro e olhos abertos, exagerando tudo aquilo que aprendeu enquanto ainda tem muito mais a aprender.

Normalmente as mentes críticas desgostam de qualquer desabafo mal feito como esse, que de início não tem cara de nada, só de um desespero inconfesso contido num isqueiro e numa pose altiva de nada. Ali os meus ombros e meu torso e o brilho do couro, uma necessidade estética, um trabalho de linguagem, um nó patético, e a porra da música mais linda saindo do nunca. Olhando pra trás, estava tudo tão óbvio e chocante, tão simples, e escapável. Olhando pra trás até que tudo pareceu fácil, bem fácil e bobo, senão miserável. Já viste, aliás, como é o olhar de um miserável ante a qualquer novo desafio? Tantas coisas nas lacunas dos olhos, enquanto passa o metrô, e aquele barulho frio do aço sem vida.

De vez em quando algum vermelho irrompe a cena, algum azul, algum rosa mais marrom que rosa. E sempre uma música de lugar nenhum insiste em falar de amor, só fazendo sentido pra alguém como eu. Martelos e pregos e você do outro lado do oceano. Daí de vez em quando uma voz... “Você já viu o último escândalo político? E o calor, não é absurdo?” Mas nas músicas nada a não ser os amores, nos poemas os amores, acima do fim do mundo, a sobrevivência dos amores. É tudo o que importa. Então vai que eu não sou a única criança aqui! Somos todos crianças miseráveis, com muitos lixões pra garimpar.

Mas é, ainda tem alguma comida em meu estômago. E algum lugar pra ir e ficar pendurado, ou uns insetos pra pinçar. E vou contar pra alguém e sem nenhuma vontade a história de uma fada, e a fada vai me abençoar seja de perto ou de longe, ou vai me render com um fuzil de assalto e pedir novamente que eu não me precipite. Como se eu ou a fada soubéssemos de algo, além de gritar, sim! Gritar continuamente, fingindo que algo dentre os secos objetos é eterno, e que nosso grito tem sempre um destinatário e, por um momento, é infalível. Em verdade, recai tudo em espera, mesmo na espera dos passos retos, pra prosseguir ansiosamente em agendas, números, mãos e sortes que repentinamente mostram alguma vida, rasgando pelo eco das promessas, fatiando em cores os trechos de um filme onde todos os gêneros são possíveis, até mesmo o da surpresa.

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